ARTIGOS


Os bestializados (Adeli Sell)

  1. A BUSCA PELAS ORIGENS

Quem somos? Como somos? Afinal, quem são os brasileiros? O povo tem cidadania?  Quem são  nossas elites?

Ao longo dos anos, como fez José Murilo de Carvalho, em seu “Os Bestializados - o Rio de Janeiro e a República que não foi", outros autores -  na ficção e no ensaio - fizeram tentativas para entender nosso povo.

José Murilo de Carvalho- JMC - capsulou o espaço e tempo do  Rio de Janeiro do fim da  Monarquia para a República até a Revolta da Vacina,  tentando entender aquele (nosso) povo, seu processo de conscientização cidadã, quais suas raízes e como se comportavam os donos do poder.

Sérgio Buarque de Holanda - SBH - em seu "Raízes do Brasil"  - há mais de 80 anos atrás – da mesma forma, buscou saber como foi nossa formação.

Há exatos 60 anos, o jurista gaúcho Raymundo Faoro traz à luz "Os donos do Poder - formação do patronato político brasileiro". 

Já o mineiro Darcy Ribeiro  se fez a pergunta 'por que o Brasil ainda não deu certo"? ao escrever "A formação e o sentido do Brasil", um livro visceral de fim de vida, fruto de estudos antropológicos que antecederam seu escrito.

Mais recentemente, em 2017,vários estudiosos lançaram um livro chamado "Brasil, brasileiros. Por que somos assim¿” Entre seus organizadores está o ex-professor da UFRGS, Zander Navarro.

Na Literatura, são incontáveis os  textos que exploram algum elemento de nossa formação, não o homem-mulher idílico (a) que aparece em José de Alencar, mas as pessoas reais que aparecem e povoavam as obras de Machado de Assis, ou o herói sem caráter, na explosão modernista, em “Macunaíma”,de Mário de Andrade. Certamente não são os heróis estereotipados de Jorge Amado nosso modelo;  estão mais para aqueles do “Menino do Engenho”, de José Lins do Rego. Estão aqui nos pampas na obra de Érico Veríssimo e nos rincões de um “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.

 Enfim, em 1987, Os Bestializados vem para perturbar, cutucar e instigar nossas mentes. E as perguntas voltam à tona: Quem somos? Por que somos assim? Por que ainda não demos certo? Por que a República não cumpriu com suas expectativas?

Parece que aquela pergunta de Darcy Ribeiro (Por que ainda não demos certo?) está, em parte respondida no subtítulo do livro de JMC: O Rio de Janeiro e a República que não foi. Pelo menos aquela República prometida “não foi”, não veio, não apareceu. Pelo contrário, traiu as expectativas do povo.

Quando JMC se refere a Aristides Lobo, dizendo que o povo deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, que este  assistira a tudo bestializado, é porque já estávamos vivendo no nascente capitalismo brasileiro sob o tacão d' Os Donos do Poder, uma elite sem raízes locais, vinda do Velho Mundo, usufrutuária do aparelho de Estado.

Se o povo estava alheio aos fatos políticos é por causa da  formação do patronato político; este  estava na outra banda da sociedade, na Monarquia,  no Exército, cujo Marechal Deodoro da Fonseca  “proclamou" a República,  numa espécie de “golpe de Estado".

O que persegue o senso comum e adentra muitos escritos é a confusão entre povo e cidadão-cidadania.

JMC parece concluir isso quando diz que "fica evidente que havia algo mais na política do que simplesmente um povo bestializado" (grifo nosso). Vai descobrir mais que um “bestializado” na Revolta da Vacina, pouco mais de uma década depois da fundação da República.

 

  1. O LUGAR DAS CIDADES

JMC, escolhe a maior cidade da "República" de então, o Rio de Janeiro, porque tem claro que "as cidades foram tradicionalmente o lugar clássico do desenvolvimento da cidadania'.

Já Darcy Ribeiro busca o Brasil “lavado a sangue negro e índio, para ser mestiço e tropical, mais alegre, porque mais sofrido, melhor porque assentado na mais bela província da Terra, o Brasil”.

Vasculha-se aqui a cidade que “continua no centro de preocupação de todos os dias” (JCM, 1987), como  é também esta a preocupação nos dias de hoje (2018).Como fora no Direito Urbanístico com o Estatuto das Cidades, uma decorrência dos artigos 182 e 183 de Constituição Federal. Ou mais recentemente a Lei do Estatuto das Metrópoles.

No início da República se trata do negro “liberto” em 1888, cuja mão-de-obra se soma aos que nasceram da Lei do Ventre Livre, livres para trabalhar em biscates ou em empregos precários, mas jamais com acesso à terra. Seriam e são (quase sempre) mão-de-obra do mercado de trabalho ditadinho, de então e de agora, quando não mais comumente frequentadores da fileira de desempregados e subempregados.

O que faz uma multidão sem preparo numa sociedade (cidade) em formação onde Os Donos do Poder abocanham os cargos públicos para si ou para seus apaniguados? Uma cidade sem saneamento básico, com doenças e epidemias, como varíola, febre amarela, tifo, malária e tuberculose?

O país de então dependia das importações de produtos e ali se mostra in totum o perfil da administração brasileira desde sempre: antes, fora a Devassa; agora, o governo republicano aumenta impostos sobre a importação.

E o modus operandi, o Carnaval Tributário como diz Alfredo Augusto Becker anos e anos depois, já teve em passado distante suas “Raízes”.

Imperava então e parece não mudar: os salários não acompanham a alta dos preços!

E fica a pergunta no ar, lá e cá:

“(...) até quando podemos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal peso?”  (p. 21).

A classe operária, com seu poder aquisitivo erodido pela inflação, promovia suas primeiras paralisações.

Como eram ferroviários, marítimos, estivadores, cocheiros e condutores de bonde toda a economia ficava paralisada com um movimento de greve destes setores.

A violência era uma constante. Antes a chibata; agora, o povo liberto dos grilhões, a baioneta da Polícia ou os ataques de capoeiristas(milicianos) a soldo do poder. Havia o revide: eram jacobinos que “espancavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam inimigos”.

E Os Donos do Poder não agiam de modo diverso: “republicamos e monarquistas assassinavam manifestantes, envolviam-se em conspirações, planejavam golpes” (p.23).

Mesmo soprando alguns ventos do Velho Mundo, da “América”, o liberalismo, o anarquismo, o socialismo e o positivismo nunca permearam o cenário político local, ficando nas suas vanguardas, muitas vezes de forma completamente mitigada e até desvirtuada.

Tivemos aqui a vitória de um “capitalismo sem sua ética protestante”, bem o oposto do que havia ocorrido nos Estados Unidos.

A República não era popular. Não houvera adesão dos negros a ela. Nem dos pobres. Fora um processo altamente repressor. Sem espelho com o que os Federalistas conseguiram fazer, apesar de ter acontecido depois a Guerra de Secessão.

O Brasil era governado por cima do tumulto das multidões.

Dissolve-se a Câmara de Vereadores, decreta-se o Código de Posturas, por prefeitos indicados, impostos de cima para baixo.

Eleitores¿ Quem era eleitor? Pouquíssimos podiam votar, poucos faziam uso do seu voto, pois o absenteísmo era alto. As pessoas tinham medo, pois o voto era a cabresto, aberto. O processo eleitoral era totalmente falseado, fraudado, pela violência.

O público não podia participar do processo de decisão. Faoro fala da “província conservadora do Rio de Janeiro”. E, de fato, era conservadora e as elites amedrontadoras.

Lima Barreto, na Literatura, é provavelmente o mais fiel “retratista” da época; pois seus personagens eram do tipo “Barba de Bode”, empresário da política, fazedor de eleições etc. Os outros eram tão quanto reais a este.

Ou seja, Os Donos do Poder desta estirpe escrota formavam o “Patronato Político Brasileiro”.

JMC ao citar o exemplo do Barão de Rio Branco é preciso: de capoeirista na juventude a expoente da manipulação, mostrando ao mundo um “Brasil branco, europeizado e civilizado”. Era isso que ele vendia lá fora.

Nem hoje em dia somos “brancos, europeizados e civilizados”. Somos para os Outros o país do carnaval, do futebol, do bumbum das mulheres nas praias ensolaradas.

Os Donos do Poder continuam sendo brasileiros malandros, travestidos de empresários, doleiros - mas jamais banqueiros.

 

  1. REPÚBLICA E CIDADANIAS

Forçoso absorver o mesmo título do autor para resumir seu pensamento.

JMC enfatiza que importamos ideias da Europa; porém mal, parcial ou seletivamente. Lembramos que o liberalismo estava presente já no Império com a Lei de Terras (1850), das Sociedades Anônimas (1882). Mas foi na política que a seletividade foi marcante. Para votar eliminou-se a exigência da renda, mas foi mantido o critério da alfabetização.

A mesma dinâmica foi seguida na elaboração do Código Penal de 1890.

É bom lembrar a figura de Silva Jardim, entoando a Marselhesa nas ruas do Rio para a sua queda no Vesúvio. O herói trágico nos persegue, seja no dia a dia do homem comum até  um líder marcante, como ele.

Porém, apesar destes senões, não se pode negar o papel do Positivismo no Brasil. É claro que sempre permeado pela “cor” local (leia-se o “interesse” deste ou daquele). Júlio de Castilhos é o exemplo clássico: do combatente republicano à figura do “inventor da ditadura” no Rio Grande do Sul.

Não podemos desdenhar nem desconhecer que as luzes vindas de além-mar trouxeram avanços em nossa legislação trabalhista, avançada para aquela época, mesmo que apenas na forma.

Mas tais progressos foram curtos, fugidios, para imperar regressões. E da lá para cá sempre foi assim, com avanços e recuos. Por sinal com grandes recuos na atualidade, com a nova lei da Reforma Trabalhista.

O internacionalismo proletário de anarquistas e socialistas não vingou. E as cidadanias foram sendo esmagadas na República, transformando o povo em pedintes de favores, empregos, benesses junto ao balcão dos Donos do Poder.

Ou seja, voltemos ao corte epistemológico proposto pelo autor: povo x cidadania.

 

  1. O VOTO E O ‘CIDADÃO’ ABSENTEÍSTA

“O Brasil não tem voto”: de fato, primeiro porque negaram-no aos que não tinham renda; segundo, não tinha voto, porque negaram-no aos que não sabiam ler e escrever. Lembrando sempre que as mulheres só foram votar na Era Vargas. Esta nos parece uma falha de JMC ao não mencionar a ausência do voto feminino. No Brasil, a luta das primeiras organizações de mulheres pela educação e pelo voto foi no final do século XIX, portanto no período de sua análise.

Quando o povo, este votava cabresteado.

E por fim a pergunta: o povo votando ou sendo “cidadão inativo” é o mesmo que não se interessar por política¿ Era de fato alheio a ela¿

O povo “bestializado” visto por Aristides Lobo na Proclamação da República certamente não era para tanto. Havia certo grau de exagero, detectado nos estudos de JMC.

Já no Segundo Reinado houve momentos de agitação popular. A própria campanha abolicionista teve momentos de imenso envolvimento popular.

Nos relatos de nossa História, na pena dos literatos, nos jornais de época, como depois no rádio, TV e agora na Internet há de um lado desdém e de outro exagero.

Se o atual historiador, investigador, pesquisador tem problemas documentais a lhe elucidar caminhos, imagina no futuro quando daqui há poucos anos, como dizem as pesquisas, mais da metade do que vamos ler é verdadeiro.

Tivemos sim greves operárias, passeatas, quebra-quebras.

Este mesmo povo fora do eixo, aqui no Rio Grande do Sul fez no início do século XX sua primeira greve geral.

Fez depois quebra-quebra e incendiou propriedades de alemães quando entramos na Segunda Guerra.

Está mais para o que escreve JMC ao citar Raul Pompéia; “Aqui há povo; há mais do que povo; há povos”. Seria uma aproximação do que pensou Darcy Ribeiro ao enfeixa-los todos em seu “O povo Brasileiro”.

JMC pergunta lapidarmente:

Havia uma constituição que garantia os direitos civis e políticos dos cidadãos, havia eleições, havia um parlamento, havia tentativa de formar partidos políticos. A mesa estava posta, por que não apareceram os convivas¿ Onde estavam eles?”. – p.74

Seriam estes os “cidadãos inativos” Absenteístas nas eleições¿

No Rio de Janeiro, havia 30% de estrangeiros. Mas eles dominavam os abrigos para as classes médias e proletárias.

Do povo, 50% não sabia ler nem escrever;  e como o meio de comunicação era o jornal; logo, quem se informava e onde se informava¿.

Uma minoria votava: 1,3%.

Em Nova York, em 1888, ano da Lei Áurea, 88% da população masculina votou para prefeito.

No Brasil, repetimos, votar era perigoso.

“As eleições era decididas por bandos que atuavam em determinados pontos da cidade e alugavam seus serviços aos políticos” (p.88).

Votavam defuntos. Votavam ausentes. As atas eram forjadas.

Borges de Medeiros copiou este modo de ser e fazer aqui no Rio Grande do Sul.

De fato, nas eleições não tinha povo. Pois o povo estava nas greves e nos quebra-quebras.

Por isso, ao analisar o capitulo de “Cidadãos Inativos” fizemos uma chamada para “O VOTOE O ‘CIDADÃO’ ABSENTEÍSTA”.

Nas eleições havia ausência de povo. Logo,  não tinha cidadania; não tinha como expressá-la pelo voto; mas nas ruas tinha povo e agia de alguma forma como cidadão.

  1. DA REPÚBLICA À REVOLTA DA VACINA, OU DO BESTIALIZADO AO CIDADÃO!

80% das pessoas não tinha direito à participação; 20% tinha, mas não se preocupava em exercer sua participação.

Se o Rio de Janeiro era sujo, não tinha saneamento básico, era um amontoado de casas incluindo o Centro até que as obras de Pereira Passos surgiram; por que o povo, mesmo diante das epidemias e doenças, da falta de habitação e da subhabitação iria se rebelar contra a vacina¿ Os outros fatores de vida não eram preponderantes em suas vidas¿

A varíola podia matar. A vacina já tinha se tornada obrigatória em 1837. Em 1903, o governo resolve fazer nova lei. Pelos relatos se vê a presença militante e o papel dos positivistas neste processo de rebeldia.

Houve brutal resistência à vacina. Ataca-se a lei iníqua, arbitrária e deprimente. Apelava-se para a legítima defesa e essa se faria com as marmas na mão.

Lauro Sodré, um dos líderes, imputa esta “violência” ao “governo de fazendeiros” que só este “poderia decretar a vacina obrigatória”. Era um positivista.

Nos episódios narrados se vê o papel violento da polícia a serviço d’Os Donos do Poder, trazendo até as prostitutas para a rua contra suas armas.

Mas quem efetivamente foi para as ruas¿ JMC fica buscando quem, porém fica difícil saber, quem parou, quem parou primeiro, por que parou, ou foi impedido de circular¿ Foi por convicção, ou foi por medo da violência¿ Houve uma “caldo de cultura” prévio que virou uma revolta de muitos.

Havia um foco: a vacina. Mas a rebeldia se expressa de várias formas e contra várias coisas ao mesmo tempo, como a alta da passagem injusta e a violência.

“Não fica claro, por exemplo, se houve greve durante a revolta.” –p. 123.

Os líderes puxavam pela motivação política e reformista. O modus operandi era mais ou menos como vimos durante as Jornadas de Junho de 2013,um século e uma década depois,  desencadeadas pelo preço da passagem – veja a sua presença de novo -  mas que virou motivo para tudo, sem foco qualquer.

“Há consenso na historiografia de que se prepara um assalto ao poder por parte de militares que representavam um resíduo do jacobinismo florianista” – p. 127.

Ainda:

“Os vivas propostos ao povo por Lauro Sodré, indicando a direção que dava à revolta, eram para a República” – p. 127

Conclui:

“O apelo à regeneração da República, no entanto, era por demais abstrato (grifo nosso) para arrastar a multidão à rua.” – p. 127.

JMC acha duvidosa a tese de que a vacina fora mero pretexto e que as “verdadeiras “origens estivessem mesmo na indiferença do governo em relação aos sofrimentos da população.

Fala-se também da revoluta à “reforma urbana”. Mas esta não aparece como objeto da ira popular.

Um dos elementos que mais chamam a atenção é o aspecto moralista do povo em relação à vacina: “inocular o veneno sacrílego” nas nádegas as esposas e filhas...

E aí a contradição com a realidade passada, pois “as pessoas vacinavam-se em proporções crescentes” – p. 133.

Devemos levar em conta mais uma vez a carestia que citamos ao tratar do aumento de impostos.  O preço do gás de um lado e a falta de luz de outro era real e ensejou anos mais tarde uma famosa marchinha de carnaval.

1903 foi um ano de greves, ao todo 31. Logo, havia povo. Greve não se faz sem mobilização de massas!

“A Revolta da Vacina (...) fundamenta-se primeiramente (grifo nosso) em razões ideológicas e morais”. – p. 135

Na verdade, reconhece o autor, um justificativa moral está presenta nas revoltas de base econômica. E busca apoio à esta  tese nos estudos do historia de  E.P. Thompson, entre outros. Poder-se-ia falar  até numa espécie de  “guarda-chuva moral”.

“O inimigo não era a vacina em si mesma, mas o governo, em particular suas força de repressão”. – p.136

Os motivos, sem dúvida, foram variados, Mas a revolta começou em nome da legítima  defesa dos direitos reais; os consumidores de serviços públicos acertaram velhas contas. Os empregados, com os patrões; os cidadãos,  como  governo.

E JCM conclui:

“A revolta da vacina permanece como exemplo quase único na história do país de movimento popular de êxito baseado na defesa do direito dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelo governo” – p. 139

A vitória não foi traduzida de plano em mudanças políticas.

Mas foi um grande processo de formação da cidadania.

Mostrou que o governo não pode por o pé no pescoço do povo impunemente.

Aqui, com este episódio, o povo -  bestializado com a Proclamação da República -  passou à proatividade, iniciando um processo de cidadania mais plena.

  1. AFINAL, SOMOS UM POVO BESTIALIZADO¿

Somos incapazes de pensar? Somos omissos? Absenteístas por princípio? Está  em nossas “Raízes”?

A faina de Sérgio Buarque de Holanda não nos daria algumas luzes?

“A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só observa, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida” (HOLANDA,1995)

Senão vejamos:  o peso da religião na vida de nosso povo foi qual¿ E o associativismo foi qual?

O espírito associativista esteve presente em sociedades religiosas, dos terreiros aos conventos.

Impõe-se estudar os grupos associativos ligados a grupos étnicos também. Lembramos os clubes de negros, os círculos operários, as sociedades dos imigrantes europeus.

Não se pode desconhecer o associativismo no Brasil.

Voltemos ao tema das cidades. JMC escolheu a maior delas na época estudada. Não foi estudar a aldeia, o quilombo por mais importantes que eles tenham sido para nossa formação cultural. É nas cidades que se podem efetivar a cidadania, é ali que o coletivo se sobrepõe ao individual.

“A cidade é capaz de criar cultura nova, seja de consolidar traços da cultura herdada, seja de modificar estes traços em outras direções” - p. 152

         Aqui se vê uma relação com a citação feita de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil.

Como JMC justifica com teses de Weber o Rio de Janeiro como “uma cidade predominantemente consumidora e de pesada tradição escravista”, poderíamos nos valer nos dias atuais dos modernos estudos de Zigmunt Bauman sobre o consumo nas sociedades, cujos elementos já se faziam presentes e se repetem na potência “n” na sociedade pós-moderna.

A República não dera o salto das promessas feitas; o povo não via nela nem “fraternitas nem societas”. Diante disso, reagia pela oposição, pela apatia ou pela composição.

Qualquer semelhança de características comportamentais com os dias de hoje não deve ser mera semelhança.

Talvez esteja tudo lá em nossas “Raízes”.

Vejam como se fazia a “justiça privada” pelos capoeiristas. Qualquer similitude com os milicianos do Rio atual não deve ser mero acaso. Se aqueles integravam a Guarda Negra da época, estes podem integrar os quadros da Polícia atual.

Valemo-nos de Sérgio Buarque de Holanda na citação feita para entender o samba encampado pelo branco, e o futebol tomado dos brancos pelos negros.

Somos pragmáticos, com o pé no chão para “saber lidar com a realidade em benefício próprio” (p. 158); vide “Lei de Gerson”, numa referência à publicidade de cigarros, feitas por jogador famoso, “para levar vantagem”.

Lapidar a visão de JMC ao dizer:

“A lei (...) desmoralizada (...) em todos os domínios leva a esta “duplicidade” (...), contribuindo “para a mentalidade da irreverência de deboche, de malícia”. De tribofe” – p.159.

Vai adiante e diz:

“O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação. Num sentido talvez ainda mais profundo que o dos anarquistas, a política era tribofe. Quem apenas assistia como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra.” – p. 160

Trapaceiro, velhaco, muito esperto. Isso é o tipo “bilontra”. Longe de ser um “bestializado”; porém a depender das circunstâncias o brasileiro parece ser um bipolar: às vezes, bestializado; noutras, bilontra.  Não é a cara da “Lei de Gerson”. Isso era ser “bilontra”.  Não é o que o senso comum tem de si? Ah, “eu sou esperto”, num puxado sotaque “a la carioca”. E o Outro vê n’Outro um velhaco, uma trapaceiro.

Se todos fossem como certo professor que se confrontou com quatro alunas. Poderiam ser alunos. Mas eram, no caso alunas. Fizeram festa no final de semana, não foram às aulas na segunda, inventaram uma viagem, na qual o carro estragara etc e tal. Perderam a prova, o professor marcou para a semana seguinte a prova de recuperação.

E as colocou em 4 salas distintas fazendo meia dúzia de perguntas sobre a viagem delas, o carro estragado etc e lhes disse, acertando todas, vocês tem nota 10.

Adivinhem o que aconteceu? Não passaram pela conduta ética.

  1. E DAÍ? AFINAL, QUEM SOMOS?

Já dissemos anteriormente que a busca de entendimento do país, de seu povo, de nosso caráter etc vem de longe. “Brasil, Brasileiros. Por que somos assim¿” veio a lume no ano passado, com ensaios sob a organização de Cristóvão Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro. Ou seja, a ânsia de saber nosso DNA é permanente.

Olhemos para o regime político, para a cidade e para o povo-cidadão.

A República , a cidade e a cidadania  não se conectaram e teimavam em não se ligar um ao outro.

A República sem participação e com manipulação eleitoral somada a uma cidade sem as características objetivas de uma cidade real, mas mastodôntica de traços da escravidão, dos estrangeiros, das coisas fora de lugar, sem o respeito a direitos, pelo contrário, tudo era formal – a República declarada, a Constituição exarada, os direitos trabalhistas importados, mas esta República não era nada daquilo que dizia e queria ser, a Constituição era uma folha de papel, para que direitos trabalhistas formais para desempregados, subempregos, pivetes, biscateiros, capoeiristas.

“A relação da República com a cidade só fez, em nosso caso, agravar o divórcio entre as duas e a cidadania” – p. 162

O povo fora espectador num primeiro momento, talvez bestializado, mas com um compasso pragmático foi levando, depois teve laivos de cidadania, ficou esperto, mobilizou-se e na onda de outros utilizou-se dos meios que tinha, quebrar, queimar e anarquizar.

Não faltaria foco ao andar de baixo¿ porque no andar de cima havia uma visão, era necessário se livrar do peso das fazendas, dos mandantes de então, criar uma República com povo, qualquer que fosse ele, impor uma nova ordem. É o que se vê, mas tanto a visão dos de cima, como o comportamento dos de baixa estava prenhe de contradições.

Por isso até hoje buscamos saber, afinal, quem somos e como somos.

Parece que, sempre e eternamente,  estamos diante de uma tarefa de Sísifo!

 

BIBLIOGRAFIA

 BUARQUE, Cristovam, ALMEIDA, Francisco, NAVARRO, Zander.  Brasil, brasileiros. Por que somos assim¿ Brasília, Fundação Astrogildo Pereira-Verbena Editora, 207.

 CARVALHO, José Murilo de.  Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª. ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1987

FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato politico brasileiro. 5ª. ed. São Paulo, Globo, 2012

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª. ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1995

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995